Há décadas que se reclama e os governos pouco fazem para diminuir a burocracia que só eleva os custos do serviço de cabotagem. Assim, as exigências burocráticas que se levantam para que um navio possa operar continuam iguais àquelas que são feitas a uma embarcação de longo curso, o que foge à luz da razão. Afinal, o navio da linha de cabotagem não sai dos limites do País, navegando apenas em águas brasileiras.
Com isso, perde-se muito tempo, o que representa custos que são acrescentados ao produto transportado. Dessa maneira, um modal que é vital numa Nação de dimensões continentais não consegue se desenvolver nas proporções que o País requer, perdendo cargas para outros tipos de transporte. Mesmo assim, cresceu 22% ao ano de 2005 a 2017, taxa superior à da navegação de longo curso, que no mesmo período evoluiu 4% ao ano, segundo dados da Datamar Consulting.
Como exemplo de entrave, pode-se lembrar que, para que um carregamento seja executado, é necessário que o Sistema de Controle de Carga (Siscarga), da Receita Federal, e o terminal estejam informados sobre todas as cargas que serão descarregadas e carregadas no porto escolhido. Ou seja, não é possível começar a descarga sem que esteja definida toda a carga que será depois carregada. Isso representa perda de tempo e dinheiro.
ESTADÃO: O Brasil é um país continental, com 8 mil quilômetros de costa. Nada mais normal do que usarmos essa estrada natural para transporte de carga. Nos últimos 10 anos, a cabotagem – navegação costeira entre portos do mesmo país – vem crescendo em um ritmo acelerado no Brasil. Foram adquiridas, nesse período, 21 embarcações de bandeira brasileira, em um investimento da ordem de R$ 3,5 bilhões.
São investimentos em navios de última geração, comparáveis aos melhores do mundo, que prestam serviços sofisticados. As empresas brasileiras de navegação, que operam regularmente no transporte de contêineres, já superam a marca de 1 milhão de TEUS/ano (2017), e os números do 1.º trimestre de 2018 mostram ritmo de crescimento ainda maior. Apenas na movimentação de contêineres, o crescimento anual médio, desde 2011, foi de 13,01%. E isso se manteve mesmo com a economia desaquecida dos últimos anos.
A solução logística porta a porta, oferecida pelos armadores nacionais, tem estimulado a transferência de cargas de longa distância do modal rodoviário para a cabotagem.
Ou seja, o transporte de carga por via marítima existe no país, é forte, presta um serviço confiável e de alta qualidade. Neste momento poderia estar contribuindo ainda mais para amenizar o problema da distribuição de cargas ao longo da costa brasileira. Mas, segundo dados da ILOS de 2017, o Brasil conta, atualmente, com 63% da produção sendo escoada pelas rodovias, 21% da produção passando pelas ferrovias nacionais, enquanto o transporte aquaviário movimenta apenas 13% das cargas, aqui incluídos a navegação de cabotagem e a navegação fluvial e lacustre. Em termos de comparação, na China, mais de 50% da produção é escoada pelo modal aquaviário.
Vimos recentemente, com a greve dos caminhoneiros, o tamanho do prejuízo para todo o País da dependência do modal rodoviário. Ficou evidente a necessidade ainda maior de um melhor equilíbrio entre os modais.
Uma boa oportunidade para que a cabotagem continue ganhando espaço, é o PNL (Plano Nacional de Logística), em fase de discussão no Governo. Ele tem como objetivo “alcançar uma divisão mais equilibrada da matriz de transportes, considerando-se a eficiência dos modais para a movimentação de cargas no País”. Para que essa proposta se concretize, no entanto, é necessário que haja isonomia no tratamento entre os modais.
Ao contrário da direção que deveríamos estar tomando, com o advento das manifestações dos caminhoneiros, mais uma vez o Governo se dispôs a oferecer diferenciais competitivos ao transporte rodoviário de cargas, correndo o risco de, assim, ampliar ainda mais o fosso da desigualdade de condições entre os modais.
Há mais de 20 anos a navegação de cabotagem enfrenta dificuldades com a flutuação internacional de preços de combustível marítimo. Para os rodoviários, o tratamento na relação com o diesel já era diferenciado. Agora, mesmo com o aumento de custo de todos os combustíveis, superior a 50% só neste ano, que impactou a todos os modais de forma similar, o subsídio do diesel foi apenas para os transportes terrestres.
Por outro lado, o governo parece ceder às pressões e se dispõe a interferir na economia privada, definindo tabelas de fretes mínimos para o modal rodoviário e, esquecendo que um dos motivos da atual crise é o excesso de caminhões adquiridos nos últimos anos, parece disposto a agravar a situação mostrando disposição de incentivar a renovação / ampliação da frota de caminhões com financiamentos em condições privilegiadas.
Enquanto isto a cabotagem, que tem inúmeros benefícios que deveriam estar sendo levados em consideração, na tomada de decisão política para alcançar o equilíbrio entre os modais, continua sendo tratada em um segundo plano, com frequentes ameaças de mudanças nos marcos regulatórios.
Para começar, é um sistema de transporte menos poluente. Para uma mesma distância, um navio emite pelo menos 4 vezes menos carbono, por tonelada transportada, do que um caminhão, além de aliviar o congestionamento das rodovias, que é fator agravante na poluição rodoviária. Um exemplo claro disso acontece no transporte de toras de eucalipto entre o sul da Bahia e Portocel-ES, em comboios oceânicos especializados, iniciado há cerca de 15 anos, que realizam mais de 1 viagem por dia transportando o equivalente a 100 carretas tipo tritrem que são retiradas das estradas (200 viagens de ida + volta).
Outro ponto a ser valorizado é que a cabotagem detém o melhor desempenho em termos de segurança de transporte dentre os modais. Como o transporte rodoviário é mais sujeito a acidentes e roubos, isso tem impacto sobre o seguro das cargas. Por ser um meio mais seguro, a cabotagem pode caracterizar inexistência de sinistros durante o transporte de uma carga, o que reduz preços na renovação do seguro.
Por fim, a utilização da cabotagem exige muito menos investimentos em infraestrutura, o que é relevante para qualquer país em crise. A cabotagem usa uma via já pronta e com capacidade ilimitada, a “BR-Marítima”, de 10 mil km, ao longo da costa brasileira, se incluirmos o trecho até Manaus. Os investimentos portuários, essenciais para receber navios cada vez maiores e estimular nosso comércio exterior, quase sempre representam um investimento marginal para receber os navios de menor porte operando na cabotagem.
O governo está enfrentando um momento de crise extremamente delicado e tem que buscar soluções emergenciais. Não pode, no entanto, deixar que as soluções imediatas conduzam ao processo inverso ao que precisamos buscar no médio e longo prazo, que é a correção da matriz de transportes, para reduzir a dependência da logística interna a um único modal. O país pode e deve contar com a cabotagem.
*André Mello é vice-presidente executivo da ABAC (Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem)